Propostas competitivas são educativas? Sobre gincanas e olimpíadas.

Pergunto: propostas competitivas são educativas?

“A vida é competitiva”
“O esporte é competitivo”
“A competição estimula os alunos”
“Se não estiverem aptos a competir, não serão nada na vida”
“Desta forma eles pelo menos se interessam por alguma coisa”

Com argumentos deste tipo, as escolas estão cheias de propostas de gincanas e olimpíadas para tratar dos mais diversos assuntos.

Porém, penso que todas as atividades de uma gincana ou olimpíada em que a proposta é competir e ter um vencedor, podem ser desenvolvidas sem o caráter competitivo: teatro, pintura, poesia, jogos, esportes…

Esportes? Esportes podem não ser competitivos? Sim, quando se joga pela diversão, não pelo prêmio. Pode-se inventar regras, inventar novos jogos, trocar jogadores até os times chegarem a um equilíbrio, misturar homens com mulheres, mais fracos com mais fortes…

O que creio é que fazer um trabalho educativo em forma de competição (olimpíada ou gincana, por exemplo), pode fazer com que o objetivo da participação do aluno seja ganhar, e não aprender.

E para isso pode-se, por exemplo, estimular os métodos não honestos (o roubo, a cola, os subterfúgios, o isolamento dos mais fracos…), porque o interesse é no prêmio, não no processo ou no aprendizado.

Os alunos podem ter algumas atitudes diferentes das que gostaríamos.

Quando um aluno faz algo que atrapalha seu time ou “bandeira”, os outros serão compreensivos e o ajudarão? Ou terão interesse em afastá-lo?

Os alunos com dificuldades (PNEE) não serão vistos como “lerdos” e como aqueles que atrapalham o grupo?

Isso não gera um sentimento de afastamento entre eles?

Se se dividir a escola por turma, acirra-se a competitividade, quiçá a violência, entre as turmas; se se divide por “bandeiras”, em que em uma mesma turma tem-se diversas bandeiras, acirra-se a competição, quiçá a violência, dentro da escola e dentro de uma mesma turma.

Eu falei sobre este assunto em um pedaço de minha tese de doutorado (que em breve disponibilizarei aqui), relacionado a uma “gincana ecológica”. Este pedaço, para quem quiser ler, coloco lá no final, como um anexo.

Afinal, será possível propostas não competitivas em que, ao mesmo tempo, estimulem o aluno a participar e aprender?

Por que não fazer teatros, poesias, vídeos, pinturas etc., sem caráter competitivo?

Quem quiser fazer, se inscreve e faz.

Ao invés de competir, todos poderiam fazer um trabalho conjunto em que todos ganhassem, em que o “prêmio” fosse coletivo:

Painéis coletivos
Cartazes para a escola
Embelezamento da escola
Trabalhos para serem repassados aos alunos mais novos
Campanhas de prevenção de doenças
Prevenção da dengue
Uso da rua (que não é movimentada) para recreação ou jogos de rua
Uso dos espaços da escola (muitos ociosos) para recreação
Transformação da escola em um grande jardim
Mutirões de limpeza
Campanhas contra desperdício de papel, de água, de energia

No final, faz-se culminâncias, apresentações, com todos do grupo, toda a escola, os responsáveis, convidados do bairro.

Afinal, para quê estamos educando as crianças?

Declev Reynier Dib-Ferreira
Educador que não pretende fazer os alunos competirem pra aprender

 

ANEXO
[Parte do texto de minha tese de doutorado]

“Incorre-se, com esta atividade [de catar lixo, dentro da gincana ecológica], em um reducionismo relativo ao trabalho educativo com o lixo, pois a atividade se focaliza nos resíduos pós-consumo e em ações competitivas e mecânicas de acumulação. A atividade de “gincana ecológica” não é incomum de ser encontrada . Gincana é uma competição entre grupos (equipes) na qual ganha a equipe que realiza a maior parte das tarefas propostas, com mais rapidez e/ou qualidade. Essa atividade contraria a noção de ética da solidariedade apontada por Morin, segundo o qual “o conhecimento complexo conduz ao modo de pensar complexo, e esse modo de pensar complexo, ele próprio, tem prolongamentos éticos e existenciais” (1997, p.22). Segundo o autor,

uma sociedade extremamente complexa, uma sociedade em que indivíduos e grupos têm muita autonomia e que, evidentemente, há desordens e liberdade, no limite ela se destrói, pois os indivíduos e grupos não mais têm relações entre si. (…) A única maneira de salvaguardar a liberdade é que haja o sentimento vivido de comunidade e solidariedade, no interior de cada membro (…). O pensamento que une o modo de conhecimento se prolonga para o plano da ética, da solidariedade e da política (Morin, 1997, p.22).

Há controvérsias entre os autores estudados sobre a capacidade pedagógica de uma gincana, atividade baseada em uma lógica competitiva, com equipes, pontuações e prêmios – o que é incoerente com uma ética de solidariedade. Geralmente, em uma gincana “ecológica”, as tarefas são igualmente competitivas – não colaborativas. Convém lembrar Loureiro (2004, p.82), para o qual uma educação ambiental transformadora “significa romper com as práticas sociais contrárias ao bem-estar público, à eqüidade e à solidariedade, estando articulada necessariamente às mudanças éticas que se fazem pertinentes”.

Neste exemplo [do trabalho que analisei], as equipes teriam que juntar a maior quantidade de lixo para acumular pontos e ganhar a competição. Considerando, porém, que o foco da educação ambiental deva ser justamente o inverso, a não produção de resíduos e a crítica ao modelo capitalista, essa atividade é contraditória, pois ganha quem junta mais lixo.

Poder-se-ia argumentar que a proposta não é “produzir” resíduos sólidos, mas levar à escola o lixo já produzido no dia a dia. Mesmo assim, porém, é contraditório, pois a lógica competitiva (o fato de ter que juntar resíduos para ganhar) se alia à lógica do “consumir”: imagine uma equipe em que alguns de seus componentes têm em casa pais que mantém hábitos saudáveis, cozinham a partir de alimentos naturais (sem muitas embalagens, portanto), que não bebem nem refrigerantes nem bebidas alcoólicas (não juntam latinhas nem garrafas pet), que mantém o hábito de reutilizar muitos dos materiais que iriam para o descarte e que não são consumistas… esta equipe provavelmente irá perder a competição.

Por outro lado, um aluno da outra equipe chega à escola com um saco cheio de latas, garrafas, pratos e talheres descartáveis, porque seus pais deram uma festa onde se consumiu muita cerveja e refrigerante. E na hora da compra, eles preferiram as embalagens descartáveis justamente para o filho poder ganhar a gincana da escola. De fato é este o que tem probabilidades de ganhar.”

Declev Dib-Ferreira

Declev Reynier Dib-Ferreira sou eu, professor, biólogo, educador ambiental, especialista em EA pela UERJ, mestre em Ciência Ambiental pela UFF, doutorando em Meio Ambiente pela UERJ. Atuo como professor na rede municipal de educação do Rio de Janeiro e também na Fundação Municipal de Educação de Niterói (FME), no Núcleo de Educação Ambiental (NEA). Sou coordenador de educação da OSCIP Instituto Baía de Guanabara (IBG) e membro/facilitador da Rede de Educação Ambiental do Rio de Janeiro (REARJ)... ufa! Fiz este blog para divulgar minhas idéias, e achei que seria um bom espaço para aqueles que quisessem fazer o mesmo, dentro das temáticas educação, educação ambiental e meio ambiente. Fiz outro blog, com textos literários (http://hebdomadario.com), no qual abro o mesmo espaço. Divirtam-se.

5 thoughts on “Propostas competitivas são educativas? Sobre gincanas e olimpíadas.

  • 24/02/2011 em 13:33
    Permalink

    Interessante sua tese, parabéns pelo questionamento, que isso renda-lhe frutos saborosos na sua carreira de professor! Eu terminei o curso de Pedagogia e não sei por onde começar…

    Resposta
  • 25/03/2011 em 13:45
    Permalink

    Olá Declev, tudo bem!

    Estava pensando sobre o tema de como seria a prática desportiva sem o caráter competitivo, privilegiando a diversão, a beleza artística, a criatividade e a integração solidária… e pesquisando na internet achei seu trabalho… gostaria de aprofundar essa reflexão, no intuito inicial de viabilizar uma crítica propositiva a um novo modelo de “paradigma esportivo”: Como tornar a prática desportiva não-competitiva tanto ou mais estimulante que a competitiva? Entre outras idéias relacionadas…. Abraço, Pedro.

    Resposta
  • 22/06/2011 em 17:58
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    Prezado Declev,
    vi um comentário seu no Face do Nelson, sobre competiçoes e resolvi ler seu artigo. Concordo com a idéia de que não são necessárias competições para motivar os alunos, mas, por outro lado, não vejo as competições como sendo necessáriamente ruins. Participando de um debate sobre competições uma vez, ouvi que é mais dificil falar sobre solidariedade em uma competição do que em jogos cooperativos, o que demonstra às possibilidades pedagógicas das competições. Mesmo não concordando com afirmações do tipo “a vida é competitiva”, não é possivel esquecer que existe competição em muitos momentos dela. Saber lidar com isso, sem considerar que os outros são inimigos, ou saber que a derrota ou o insucesso não significam o fim de tudo, mas um momento de possivel crescimento e amadurecimento; me parece de enorme valor na formação do ser humano.
    Para não me alongar, o que eu quero dizer é que competição não é necessáriamente ruim, como evitar competições a todo custo não é necessáriamente bom. É preciso conhecer o significado de cada uma das propostas e, em todas, ter uma relação consciente e critica.
    Desculpe a intromissão, mas como tenho trabalhado com isso senti vontade de participar.
    Abraços,
    Luiz

    Resposta
    • 22/06/2011 em 18:33
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      Oi Luiz,

      Obrigado pelas observações; não precisa pedir desculpas e não é intromissão. Muito pelo contrário, espero debates como este quando escrevo.

      Concordo com suas colocações. Há formas e outras formas de se utilizar as competições, mas o que vejo em minha experiência é só uma: competição é… competição.

      Pode-se, ao contrário, utilizar a competição para trabalhar conceitos citados por você (crescimento, amadurecimento, valores)?

      Talvez.

      Mas vale se fazer toda uma análise sobre a atividade, antes de se colocar em prática – se se pretende algo mais do que simplesmente achar o melhor, o mais forte ou algo do tipo.

      Quer dizer, uma competição de futebol, por exemplo, ensina algo mais do que ganhar a partida? (ou ter condicionamento físico)

      Abraços,

      Resposta
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